Um livro para Passos Coelho ler
Por Baptista-Bastos
ESTAMOS enfraquecidos e aterrorizados. O pior ainda não chegou, avisa-nos o Governo, que já desempregou não só milhares de portugueses, como a própria generosidade. A banalidade das advertências quase deixou de nos comover. Aceitamos as coisas com a resignação de quem entende que valores mais poderosos se levantam. Como há tempos me disse o meu amigo João Lopes, deixámos de alimentar a compaixão, sem a qual nem sequer sobrevivemos: vegetamos. Mas vale a pena insistir na notícia desta desgraça? Creio que sim; de contrário estaríamos a ressuscitar a fantasia de que, se tudo não está bem, vai melhorar. Não vai. Pedro Passos Coelho pressagiou o nosso empobrecimento; agora, pede-nos energia. Anda, notoriamente, desorientado. E não sabe a quem se dirige, por desconhecimento de quem somos. Mas não somos matéria vaga.
Leio em Montesquieu: "Não há desgosto que uma hora de leitura não desvaneça." Faço-o, há muitos anos. Claro que o desgosto não se desvanece. Mas a leitura reconforta-nos. E permite-nos estabelecer comparações. É o que devia fazer o Governo: ler. Há, nele, uma encantadora ausência de livros, sobretudo de História. Os discursos chãos, vazios de sentido, escassos de virtude quanto cheios de ignorância, fornecem-nos a dimensão cultural e moral destes senhores. Não se pode governar estranhando a natureza de quem é governado.
Um volume recente, o terceiro da História de Portugal, de António Borges Coelho, ergue-nos o ânimo e alivia-nos dos pesares. Recomendo a Passos, que parece tão desviado de nós, a leitura de Largada das Naus, que nos sacode a sonolência de espírito e nos convoca a inteligência e a coragem. É um texto extraordinário pela beleza da prosa, pelo rigor da pesquisa, pela grandeza da proposta. Como nos dois tomos anteriores, Donde Viemos e Portugal Medievo, o grande historiador não oculta a paixão pelo povo, a contribuição inapagável e sem preço de uma gente fervorosa, amante e entusiasta, violenta e terna, que troca "gestos, cerimónias, roupas, vocábulos" e que experimenta "as armas e os corpos". Nós.
Como poucos, António Borges Coelho fornece-nos a dimensão de um tempo e a espessura de uma população que construiu o país com a rudeza de uma vontade quase inexplicável. Como é possível desconhecer esta gente?, que criou um leito de nações, enquanto consolidava a sua própria, com o génio e o montante, a poesia e o sangue.
Não se deve falar connosco na linguagem da displicência. É imoral. Afinal pertencemos a uma estirpe que, para citar o etnólogo brasileiro Luís da Câmara Cascudo, outro maior, "levou nas naus o coração batente e a pedra de Pêro Pinheiro, mas, também, a língua e a força da aprendizagem". Essa força transformadora que, na repressão, no opróbrio e na desdita não foi nunca dominada.
«DN» de 29 Fev 12ESTAMOS enfraquecidos e aterrorizados. O pior ainda não chegou, avisa-nos o Governo, que já desempregou não só milhares de portugueses, como a própria generosidade. A banalidade das advertências quase deixou de nos comover. Aceitamos as coisas com a resignação de quem entende que valores mais poderosos se levantam. Como há tempos me disse o meu amigo João Lopes, deixámos de alimentar a compaixão, sem a qual nem sequer sobrevivemos: vegetamos. Mas vale a pena insistir na notícia desta desgraça? Creio que sim; de contrário estaríamos a ressuscitar a fantasia de que, se tudo não está bem, vai melhorar. Não vai. Pedro Passos Coelho pressagiou o nosso empobrecimento; agora, pede-nos energia. Anda, notoriamente, desorientado. E não sabe a quem se dirige, por desconhecimento de quem somos. Mas não somos matéria vaga.
Leio em Montesquieu: "Não há desgosto que uma hora de leitura não desvaneça." Faço-o, há muitos anos. Claro que o desgosto não se desvanece. Mas a leitura reconforta-nos. E permite-nos estabelecer comparações. É o que devia fazer o Governo: ler. Há, nele, uma encantadora ausência de livros, sobretudo de História. Os discursos chãos, vazios de sentido, escassos de virtude quanto cheios de ignorância, fornecem-nos a dimensão cultural e moral destes senhores. Não se pode governar estranhando a natureza de quem é governado.
Um volume recente, o terceiro da História de Portugal, de António Borges Coelho, ergue-nos o ânimo e alivia-nos dos pesares. Recomendo a Passos, que parece tão desviado de nós, a leitura de Largada das Naus, que nos sacode a sonolência de espírito e nos convoca a inteligência e a coragem. É um texto extraordinário pela beleza da prosa, pelo rigor da pesquisa, pela grandeza da proposta. Como nos dois tomos anteriores, Donde Viemos e Portugal Medievo, o grande historiador não oculta a paixão pelo povo, a contribuição inapagável e sem preço de uma gente fervorosa, amante e entusiasta, violenta e terna, que troca "gestos, cerimónias, roupas, vocábulos" e que experimenta "as armas e os corpos". Nós.
Como poucos, António Borges Coelho fornece-nos a dimensão de um tempo e a espessura de uma população que construiu o país com a rudeza de uma vontade quase inexplicável. Como é possível desconhecer esta gente?, que criou um leito de nações, enquanto consolidava a sua própria, com o génio e o montante, a poesia e o sangue.
Não se deve falar connosco na linguagem da displicência. É imoral. Afinal pertencemos a uma estirpe que, para citar o etnólogo brasileiro Luís da Câmara Cascudo, outro maior, "levou nas naus o coração batente e a pedra de Pêro Pinheiro, mas, também, a língua e a força da aprendizagem". Essa força transformadora que, na repressão, no opróbrio e na desdita não foi nunca dominada.
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